segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Felicidade

Conto baseado na história de vida de José Filipe Nogueira da Silva, o qual conheci em um vídeo divulgado numa palestra sobre transplantes de órgãos.

Balbuciava palavras e não recebia respostas. A visão parecia lentamente debilitada. Talvez ele estivesse necessitando de mim a partir daquele momento. Não queria partir deixando os amigos que se esforçaram tanto por mim, pela manutenção da minha frágil vida. Entretanto, já era hora. As minhas asas já estavam completamente erguidas e tudo se tornava claro, ofuscava meus sentidos.

A vida no hospital, inicialmente, foi bastante difícil. Remédios, macas, máscaras, seringas, tudo isso me assustava muito. A dor e o sofrimento das pessoas prostradas em camas, muitas sem nenhuma reação, me fazia esquecer as dimensões do meu problema.
Desde que nasci, meus pais foram informados da anomalia em meu pequeno coração. Os médicos sugeriram uma operação naquele mesmo instante, pois a tendência do problema era se tornar mais complicado com o decorrer dos anos. Receosos por mim, com medo de perder o único filho que acabara de nascer, meus pais hesitaram. Um médico, então, passou a acompanhar o meu desenvolvimento.
A noite foi mais longa naquele dia. Simplesmente dormi e não consegui acordar a tempo de ver a aurora dar cor ao mundo. Foi a primeira crise, o aviso do meu corpo de que não poderia suportar aquela situação. Acordei em uma cama de hospital rodeado por médicos e enfermeiros. A operação havia sido bem sucedida, por isso meus pais pareciam felizes. Eu também sentia felicidade, mesmo sem entender muito bem o que estava acontecendo naquele dia. Passei algumas semanas tomando medicamentos e dormindo.
Enquanto me recuperava no hospital, fiz alguns bons amigos. Minha mãe passava todo o tempo comigo, contando histórias, lendo livros, trazendo minhas refeições. Eu gostava de conversar com as pessoas, com outros pacientes. Gostava de poder guardar dentro de mim um pouco da essência dos outros, que viviam dores e problemas tão grandes ou até maiores que o meu sem desanimar.
Numa quarta-feira tive alta e pude voltar para o conforto da minha casa. Não gostava das quartas-feiras, por serem o meio da semana, todavia aquela me fez mudar de idéia. Pude aproveitar mais dias daquela semana graças a ela.
Os anos corriam. Passei a freqüentar uma escola, fiz muitos amigos. Lia muitos livros, sonhava com um mundo paradisíaco. Sofri um pouco ao descobrir que no mundo existem tantos problemas. A fome, a violência, a ganância... Continuava a visitar o hospital uma ou duas vezes por mês. Mal sabia eu que algo demasiadamente grave acontecia.
Mesmo envelhecendo, meu corpo permanecia pequeno, magro, frágil... Minhas pernas eram lentas e curtas e minha respiração era bem difícil. Não gostava de parar para pensar nessa minha condição. Preferia sorrir e seguir em frente, mesmo vagarosamente. Eu era feliz, gostava de saber que tive a oportunidade de viver, de cativar pessoas fantásticas, ter a chance de conhecer tudo e todos que conheci.
Eu queria sorrisos nas pessoas, não queria que sentissem pena pela minha saúde. Fazia o que estava ao meu alcance para melhorar alguma coisa no mundo.
Crises, crises, crises... Meu coração parou. A solução era um transplante.
O hospital, depois dessa triste seqüência periódica, tornou-se o meu novo lar. Máquinas faziam o trabalho do meu coração que já estava fraco, desanimado, quase sem vida. Passei anos na fila de espera por um novo coração, sem nunca desanimar. Eu tinha fé e sabia que conseguiria um novo coração. Nesse tempo escrevi bastante. Escrevi cartas para órgãos públicos, pedindo que melhorassem o atendimento dos hospitais. A vivência no hospital me mostrou o quanto era doloroso para milhares de pessoas esperar por uma consulta.
Meu corpo já estava muito debilitado quando meu novo coração apareceu.
O médico foi direto e afirmou que eu teria mínimas chances de sobrevivência mesmo após o transplante. O corpo já estava muito debilitado, outros órgãos já estavam desfalecendo. Meus pais sofriam, não queriam me perder. Eu estava feliz, tinha confiança. Vivi até ali e faria aquela cirurgia apesar das pequenas chances de sucesso.
Logo antes da cirurgia do transplante, abracei meus pais e pedi para que não ficassem tristes com o que viesse a acontecer. Disse o quanto eu os amava, que a felicidade que eles me proporcionaram era inesgotável e que estaria sempre com eles.
O coração cansado pode descansar finalmente. O novo coração, que eu não sabia de quem havia sido, queria se unir a mim. Era triste saber que alguém tivesse que morrer para salvar minha vida, por isso rezava muito pela pessoa que me salvava e agradecia a Deus.
Na sala de cirurgia, consegui sucesso no transplante. O coração era forte e fazia meu corpo ganhar vitalidade. O coração pulsava valente, todavia outros órgãos demonstravam...
A minha felicidade tornou-se luz. E foi nesse instante que ganhei asas...

“Enquanto eu pensava que a felicidade estava tão longe, que era tão difícil de encontrar, ela estava o tempo inteiro dentro de mim, ao meu redor; foi preciso apenas conversar comigo mesmo, abrir as portas do meu coração e deixá-la entrar”.
José Filipe Nogueira da Silva

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